sábado, 31 de outubro de 2009

Uma menção da razão

  De vez em quando me pergunto quais teriam sido os pensamentos de meus antepassados quando tiveram a minha idade. Que desafios encontraram? Que dilemas? Qual era a concepção que eles tinham do mundo? O que os movia, além das responsabilidades com a família? No caso da vida dos meus pais, ainda posso investigar com perguntas feitas diretamente a eles - meu pai é um contador de “casos”. Mas quando penso em meus avôs e na minha descendência, tudo fica vago demais. Sei que parte do que foram está impresso no meu código genético. Uma herança hereditária. Mas suas experiências e memórias se perderam. Existem alguns raros registros fotográficos que não dizem muita coisa. Momentos congelados no tempo. Expressões que escondem um universo único de experiências e impressões. Correspondiam ao espírito da época, ou alguns estariam à frente do seu tempo? Que tipo de mensagem eles teriam deixado para as futuras gerações se seus pensamentos tivessem sido registrados?

  Há alguns meses atrás, minha esposa me perguntou por que escrevo para este blog. Tentei responder a sua pergunta argumentando que escrever sobre os assuntos que gosto é uma maneira de dividir com os outros um pouco daquilo que descubro sobre o mundo, e publicar no blog possibilita essa comunicação. Também é um meio de manter um registro temporal da minha própria cosmovisão que vai se transformando com o passar dos anos. Além disso, tenho mesmo o hábito de escrever compulsivamente sobre o que vivo e sinto.

  Faço um registro. Do meu tempo, das minhas impressões e das de outros. Para meu filho, para futuros netos, para a posteridade.

Talvez eu não queira passar pelo mundo sem deixar uma marca, um registro de quem sou. Considero a vida importante demais para permitir que seja apenas um lampejo e um ronco de trovão. Um dia, partiremos e levaremos com nossa memória tudo o que somos. Restarão algumas lembranças que se apagarão com o tempo, como as chamas de lampiões que se extinguem quando finda o combustível.

  Em Blade Runner – O Caçador de Androides, Hutger Hauer interpreta um androide chamado Roy. Ele é o líder dos replicantes (outro nome dado aos androides que são tão perfeitos que parecem humanos). Eles se rebelaram, sendo agora foragidos caçados pelo decadente blade runner Rick Deckard, interpretado por Harrison Ford, contratado para executá-los. Os replicantes foram projetados para expirar após um tempo de vida de 4 anos, uma medida da Corporação Tyrell, a fim de não desenvolverem emoções. O problema é que Roy volta à Terra buscando mais vida e o seu tempo está se esgotando.

  O momento mais tocante da película está na atitude de Roy ao poupar a vida de seu algoz, Deckard, que estava à sua mercê. Salvo, sob a chuva, o confuso e indefeso Deckard presencia a morte de Roy que recita um comovente solilóquio antes de morrer: “Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Entrei em naves de ataque em chamas perto do ombro de Orion. Eu assisti à dança dos raios C no portão de Tannhauser. Agora todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”


  A vida de Roy foi breve, mas pelo que podemos deduzir de suas palavras, foi uma vida intensa. Seu erro foi não dividi-la com ninguém. Ele eliminou as pessoas que poderiam ajuda-lo a encontrar um sentido para sua existência. Eldon Tyrell, seu criador, tentou socorrê-lo. Para Tyrell, não importava a quantidade de tempo de vida neste mundo, mas a qualidade da vida que se tem. No final, Roy encontrou sua redenção. Salvou Deckard e preservou nele aquilo que lhe era mais importante. Roy não pôde receber mais vida, mas podia preservá-la no outro.

  Não me importa se serei lido por muitos ou poucos - se é que serei lido. Importa-me a expressão na melhor forma que conheço, pela qual descubro e redescubro este e outros mundos: A palavra escrita.
Se consigo transmitir algo através das linhas que escrevo, espero que seja a expressão de um mundo maravilhoso, repleto de beleza e mistérios para os quais não temos respostas. Somos incitados a buscar mesmo sabendo que as respostas nunca serão plenas, e consequentemente nunca estaremos completamente satisfeitos. Mas ao compartilhar o que já alcançamos encontramos satisfação. Então, a arte e a poesia não estarão somente nos olhos de quem vê, mas naquilo que conseguimos fazer outros enxergarem.

2 comentários:

  1. Há tempos penso em te dizer algo sobre o seu blog, seus textos, suas considerações...
    E hoje li este texto, que você comenta o pq de escrever aqui, o seu desejo de deixar uma marca, quase que um legado. Fiquei meditando...
    Após um breve momento de pensamentos e, observando com cuidado, pensei: faço o mesmo, quero deixar uma marca e, minha ferramenta é a palavra escrita. No entando, como estamos falando de vc (risos) seus textos são excelentes!! Construídos harmonicamente e sua habilidade é de um exímio arquiteto. Sempre dispertam em mim reflexões e finos sentimos... Escreva sempre! Abraços de quem passa por aqui de vez em quando. ;)
    Marcela Sant'Anna

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  2. Sou do tipo que não mato nem aranha, antes espanto para o mato, se entra uma libélula na janela e fica presa no vidro tentando sair, faço uma operação de resgate para ajudá-la.
    Acho Blade Runner um filme marcante, que pontuou minha geração.
    Pode servir para pensar no valor da vida, independentemente do tempo que tenha, mas pode fazer pensar tbm na convivência com as diferenças e na sua aceitação. Teria mais importância a vida do replicante que a dos humanos? Ou vice-versa? Não são as duas formas igualmente importantes, embora distintas? Penso assim quando sento no jardim em silêncio e por mim desfilam tantos pássaros, insetos os mais variados, esquilos e até meu gato de estimação e me comovo com a percepção que dividimos um mesmo espaço, cada um na nobreza de suas vidas, mas todos vivendo no mesmo mundo, em um mesmo tempo, coexistindo. Tenho aprendido a respeitar e me colocar em meu lugar, observando o vício comum da humanidade de se achar a grande dona do mundo. Somos todos donos do mundo. Eu e a aranha, a libélula, o gato preguiçoso...Me fez lembrar uma frase admirável do Drummond: " O homem, esse exagerado, acha o micróbio infinitamente pequeno e o cosmos infinitamente grande. E ele? Ora, ele se acha do tamanho natural!"
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    PS: Uma observação menos filosófica: além de ser um belo filme, Blade Runner tem uma trilha sonora sensacional!

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