domingo, 2 de setembro de 2012

Kiki de Montparnasse

Justamente por ler bastante sobra pouco tempo para escrever a respeito, e sempre há muito o que dividir sobre as descobertas aventurescas de tais leituras. A graphic novel Kiki de Montparnasse, com desenhos de Catel Muller e cenários de José Louis Bocquet é uma boa dica para quem deseja apreciar um ótimo trabalho de pesquisa aliado a um traço competente que retrata a belle époque dos dandys e da incipiente emancipação do "bello sexo" - dos "almofadinhas" e das "melindrosas" como eram chamados aqui no Brasil, nos "anos loucos" da década de 1920 -, expesso no mesmo estilo das charges da época.

A história acompanha a icônica e polêmica Alice Ernestine Prin, conhecida pelo nome de Kiki - como passou a ser chamada pelo pintor polonês Maurice Mendjisky. Ela também será a musa de outros pintores e artistas da época: Fujita Tsuguharu, Man Ray, Moïse Kisling, e outros. Como musa e companheira de Man Ray - que alcançou a glória como pintor e começou a fazer cinema - foi atriz de seus primeiros experimentos cinematográficos. Kiki polemizou a sua geração com o seu jeito atrevido e sem pudores - audaz defensora da liberdade de expressão, às vezes se excedia. Ela cantava e dançava nos clubes noturnos de Montparnasse, e as letras de suas canções tinham teor normalmente atrevido. Por isso, fora do círculo parisiense, ela era refutada como prostituta, e para a sua família interiorana, uma ovelha negra. As cartas que ela escrevia para a avó - confidente, e a verdadeira responsável por sua criação, pois a mãe se ausentara desde a infância - nunca chegavam ao seu destino, interceptadas pela família.


Influenciada pelo amador de artes Henri-Pierre Roché, Kiki de Montparnasse também dedicou-se à pintura expondo suas obras na galeria Bernheim, em 1930. Um ano antes ela começou a publicar o seu diário de memórias, e nesse mesmo ano, num baile de gala, foi reconhecida como a Rainha de Montparnasse. Algum tempo mais tarde, casou-se com um acordeonista, mas separou-se anos depois, não conseguindo controlar os seus impulsos extravagantes.
Um insólito gato preto, pintado por Kiki no famoso quadro onde retrata a sua família, parece enunciar o agouro que, para os seus parentes, devia ser a sua vida. Com a chegada da guerra muitas coisas mudaram e alguns de seus influentes amigos buscaram refúgio em outros paises para fugir do conflito, ou foram exilados.

Em consequência dos abusos da bebida e dos entorpecentes ela acabou adquirindo hidropsia, que a tornou inchada e quase irreconhecível, chegando ao ponto de perder a voz e viver da generosidade de seus amigos. Aquela que fora a musa de tantos artistas, que inspirou tantos quadros e roubou tantos suspiros, morreu em 1953, em Paris, contando com a presença de apenas alguns amigos no momento do seu enterro.


Em pleno início do século XX, foi uma figura polêmica, que viveu um período no qual o movimento feminista enfrentava inúmeras barreiras para elevar a mulher à instâncias monopolizadas pelo homem - a graphic novel registra um momento no qual Kiki e uma amiga estão em um bistrô recém-inaugurado, e são avisadas que não podem ser servidas por estarem sozinhas na mesa, sem presença masculina, o que gera uma reação escandalosa da protagonista - onde Kiki chama a atenção de Man Ray, pela primeira vez. 

Aqui no Brasil, foram justamente o cinema americano - "uma tentação do mundo moderno", expressão purista da época -, o movimento feminista estrangeiro e a moda ditada pela Europa (principalmente a parisiense) que levaram as brasileiras à transformações significativas. Surgiu uma nova mulher que deixou que a velha e ultrapassada figura da mulher doméstica, à parte do convívio social, fosse substituida aos poucos pelas ativistas em esferas intelectuais até então apenas ocupadas pelos homens.

Kiki de Montparnasse
Autores: Katell & Bocquet
413 págs 
Editora: Galera Record