sexta-feira, 11 de novembro de 2011

SUB SPECIE AETERNITATIS

Na semana passada, após ler um extrato que eu transcrevi do livro “A Insustentável Leveza do Ser”, postado no meu perfil de uma rede social voltada para leitores, uma das integrantes da minha tímida lista de amigos fez um comentário interessante: '… vejo que gosta da imortalidade de Kundera.' A palavra imortalidade fora sublinhado por ela. Fiquei um tanto curioso pela sua observação e, principalmente, pelo termo sublinhado - que somente mais tarde percebi tratar-se de uma referência a outra obra de Kundera, "A Imortalidade". Reli o texto que extrai do livro e tentei encontrar ali o sentido para seu comentário. Aquele extrato em nada sugeria o conceito da eternidade nietzschiana e spinozista que permeia a obra, mas gostei de fazer uma releitura e meditar um pouco à respeito.
Pensei o livro, a singular narrativa do autor. Lembrei dos personagens e a abordagem filosóficamente marcante da escrita de Milan Kundera, ao mesmo tempo observadora e perscrutadora das vidas que retrata no seu romance. O escritor evita contar a história daquelas pessoas como um expectador passivo que apenas discorre as atitudes delas e as consequências resultantes. Ao invés disso, Kundera se reserva ao papel de um observador contumaz e trata de discorrer o mundo interno das quatro personagens centrais de seu livro: Teresa, Tomas, Sabina e Franz.
Não há nada de estranho nisso, a maioria dos autores clássicos explora a psique de seus personagens. Mas Kundera faz isso de maneira espetacular recorrendo a diversas digressões ao passado daquelas pessoas para explicar suas personalidades, quase como que tentando dar-lhes uma razão própria, excluindo-as de qualquer julgamento moral. Ele faz esse exame imparcialmente, flertando com o determinismo. Escreve desculpando suas desventuras a fim de corroborar o escopo de sua teoria, para nos mostrar algo que os filósofos existencialistas chamam de condição humana. Faz questão de demonstrar os motivos internos que levam seus personagens a agir de determinada maneira, como que para eximi-los de julgamento quando interpretados de um ponto de vista externo, cuja pressão ele faz questão de esclarecer, o que é mais importante. 
Sua maestria em descrever humanamente essas duas perspectivas acaba levando o leitor a se identificar com as fraquezas dos seus personagens, que são também as nossas fraquezas.

Milan Kundera começa mostrando uma dessas histórias possíveis na vida de cada ser humano, que é inerente a cada um de nós: a visão que temos a partir de dentro. Nela, somos o centro das atenções, e conferimos a nós mesmos um centro de significância e desempenhamos o papel principal. Temos uma ideia exata de quem somos e uma certeza de importância imanente. Há metas, sonhos, memórias de uma história de vida linear que define nossa identidade e que são bases para nossas atitudes, dando-nos consistência. Enfim, somos os dignos personagens centrais da história. Pelo menos, da nossa história. Nela, temos a sensação de poder controlar o nosso destino, escrevendo novos capítulos dia após dia.
Mas essa é uma noção limitada e apenas uma parte incompleta do enredo.

Um bom exemplo que ilustra a limitação dessa visão interna e suas consequências é a ideia da importância do homem como o centro da Criação, que inspirou grandes pensadores a interpretar o mundo à sua volta de acordo com esse entendimento. Por conta disso, acreditavam que a Terra, lar do homem, era o centro do universo, com os planetas girando ao seu redor com uma coorte estelar a lhes fazer a honra nessa dança. O homem era o centro do universo. Do nosso ponto de vista, de fato, parecia que o sol, a lua e as estrelas giravam em torno de nós, afinal, descreviam seus circuitos de leste a oeste todos os dias e noites, o que levou à hipótese geocêntrica, aceita pela maioria durante muitos séculos. Essa interpretação foi muito bem recebida pelos religiosos. Outros pensadores (os heliocêntricos Johannes Kepler e Galileu Galilei, apenas para citar alguns dos mais famosos) que começaram a perceber que algo estava errado nessa interpretação - pois o fato de ser ou não o homem o centro de alguma coisa era irrelevante diante da verdade - foram perseguidos pelos geocentristas e, como não podia deixar de ser, pela Igreja, que durante muito tempo exerceu poderes de Estado. Foi determinado que a visão deles (o heliocentrismo, a teoria da terra e os planetas girando em torno do sol) era uma heresia, porque tirava o homem do centro da Criação. Mais tarde, não sem algumas baixas (falando modestamente), provou-se que a visão heliocêntrica estava correta. Não éramos mais o centro de um universo no qual os astros e toda a Criação desfilavam ao nosso redor. Tudo é muito, muito mais complexo e grandioso do que isso, como sabemos... Nossa mítica importância começou a declinar à medida em que passamos a conhecer melhor o universo que nos cerca.
Um ponto de vista interno e limitado pode colidir desastrosamente com a visão de fora, mais abrangente e realista (e, como descrevi acima, pode ser exatamente o oposto do que se pensa).

Millan Kundera também trata seus personagens a partir dessa outra história possível: a visão do lado de fora. O escritor e filósofo Mark Rowlands, Autor do livro "Scifi=Scifilo", descreve esse outro aspecto da seguinte forma:'(…) O efeito da segunda história, aquela contada do lado de fora, parece uma drástica realocação do nosso papel na trama. Longe de sermos o personagem principal da história, estamos reduzidos a um figuração. A história do lado de dentro gira ao nosso redor, mas na outra história cada um de nós é apenas um simples personagem em meio a muitos outros, um personagem cuja entrada em cena é determinada por outras pessoas e que não tem nenhum controle real sobre a hora da sua saída do palco. As coisas que impulsionam nossas vidas, as coisas que queremos, nossos planos, projetos e metas - aquilo que podemos chamar de nossa motivação - são o resultado de forças que não controlamos. Aparentemente, nosso papel foi escrito por outra pessoa. Temos pouco controle sobre o seu conteúdo e não temos a menor ideia de qual é o seu sentido.” Ele continua, de forma nem um pouco animadora: “...Além disso, somos individualmente o produto de forças que não escolhemos e que mal compreendemos. Não escolhemos nossos pais nem a época em que nascemos, e assim recebemos uma determinada herança genética sobre a qual não temos controle algum, mas que, até um ponto significante, tem controle sobre nós. Essa herança determina, em parte, as doenças a que somos suscetíveis e os limites de nossas capacidades intelectuais, atléticas e morais. Talvez não totalmente, mas o suficiente. Nascemos num ambiente que vai preencher o pouco espaço que sobra do que foi determinado geneticamente, um ambiente que, novamente, não escolhemos e sobre o qual mal temos controle, pelo menos durante nossos anos de formação. A maneira como somos e aquilo que fazemos são resultados de nossos genes e nosso ambiente, que, juntos, exercem em nós uma influência que compreendemos de forma bastante nebulosa. Era isso que os filósofos existencialistas, como Jean-Paul Sartre, por exemplo, queriam dizer quando afirmavam que somos jogados no mundo.”

Retornando ao meu exemplo, acrescentaria, para engrossar o caldo da nossa insignificância na segunda história, que vivemos num planeta com uma população de quase 8 bilhões de habitantes, que gira em torno de uma estrela que orbita uma galáxia onde existe bilhões de estrelas cercadas por seu próprios planetas. A nossa galáxia é apenas mais uma em meio a um universo que comporta bilhões de outras galáxias que também possuem seus bilhões de estrelas com seus respectivos planetas. Poderia citar ainda a teoria do multiverso, ou seja, a possibilidade da existência de outros universos independentes do nosso. Mas já deu pra entender onde quero chegar. Com essa pequena concepção do que existe lá fora fica meio dificil aceitar que Terra é o centro do Universo e que o homem é o centro da criação (bom, se você quiser, ainda pode admitir isso, afinal, nenhum alienígena desembarcou por aqui para dar um alô até agora).

O problema que quero mostrar aqui é aquele que encontramos quando tentamos conciliar as duas histórias, essas duas visões, a interna e a externa. Enquanto internamente somos o centro das atenções e de significado, do lado de fora não podemos ser nada disso absolutamente. O contrário também é verdadeiro: enquanto por dentro alguém pode se sentir um 'nada', quem o vê de fora pode encontrar nele um 'tudo'. Existe uma incompatibilidade aqui e um problema filosófico de duas versões da mesma história que deveriam ser verdadeiras mas não são. Alguém tem que estar com a verdade, ou então as duas versões combinadas deveriam corresponder a verdade. Mas por serem incompatíveis, não podem. Quando ambas são consideradas, uma história contradiz a outra. Algo como querer e não poder ou que deveria ser mas não pode. Esse paradoxo é chamado de condição humana. O que dá muito no que refletir e existem inúmeros problemas que resultam daí que são um apetitoso caldo filosófico.

Não é sem razão que o filósofo existencialista Martin Heidegger, disse certa vez, “o homem é o ser cujo ser é uma questão para si”.

Essa é apenas uma das muitas reflexões que fiz da leitura de “A Insustentável Leveza do Ser”. Encontrei ainda paralelos com o filme “La Dolce Vita” de Federico Fellini, que também discorre de maneira ainda mais crua a natureza dessas duas versões da mesma história, que corroboram o conceito de 'deveria ser mas não pode'. Uma amostra de como a leveza pode ser insustentável, pois é leve quando considerada de uma perspectiva externa, mas pode ser um peso do ponto de vista interno... 
Mas chega de divagações por hora.