A graphic novel Retalhos, de Craig Thompson - que li de uma tacada só - é mais do que simples leitura. É uma daquelas experiências visuais e literárias que te fazem embarcar em pura nostalgia com o mérito de levar à reflexão. Se você tiver convivido, por exemplo, um irmão com pouca diferença de idade, certamente vai relembrar vários momentos da infância com ele e das brincadeiras estúpidas protagonizadas na época - parte das memórias do próprio autor, cuja obra é autobiográfica. O mosaico de lembranças que Craig Thompson constrói com seu trabalho (como a metafórica manta confeccionada com retalhos de tecido que ele ganha de presente a certa altura da narrativa) descreve sua vida na infância e adolescência com todas as descobertas e dúvidas suscitadas em cada período. Evocam a importância que tiveram nas suas escolhas para a vida adulta. Parte importante dessa formação resulta do impacto que a religião teve na sua vida.
A primeira impressão que eu tive, ao ler o romance, foi a de que Craig procurou obter certa redenção do passado com sua obra, eliminando e procurando entender as sombras que o aprisionavam e ao seu talento, desde a infância até aos primeiros anos da adolescência. Um desabafo. Um basta. E uma explicação do como e do por quê. Não apenas para si mesmo.
Filho de pais protestantes e submetido a uma educação tradicionalista, Craig teve desde muito cedo, sua criatividade e talento para a arte solapadas pelo conservadorismo cristão da comunidade onde vivia. Essa repressão também estava presente em seus pais, contrastada com as constantes brincadeiras, nem sempre inocentes, protagonizadas com seu irmão na infância - o que é normal entre os meninos - e geralmente mal interpretadas. Em suas memórias, o garoto sonhador, curioso e altamente impressionável (toda criança é) se mostra geralmente frustrado pela falta de explicação para aquilo que não entende, bem como ameaçado pela fúria divina por causa das suas faltas. Os desenhos incipientes do futuro artista, acabam seguindo o mesmo caminho.
Com a pressão exercida pelo o que ele entende ser o mundanismo, o jovem, introspectivo e mal compreendido pelos colegas de escola, que não sabe se impor, se refugia na ideia de que esse não é o seu mundo. Em Certo ponto, Graig, pressionado pela religião, resolve queimar todos os seus desenhos e rascunhos, convencido que esses não agradam a Deus e que passara tempo demais fugindo da vontade Dele - eu também cometi essa estupidez aos 23 anos, queimando um monte de livros e deixando para trás uma série de desenhos e rascunhos da década de 1980. Seu sacrifício selava um novo tempo de dedicação ao Reino de Deus. Vale salientar que o autor registra de forma magistral a maneira como tal ideia lhe foi forçada através dos anos e imposta por pessoas que, bem intencionadas e movidas pela fé que professavam, viam no jovem uma ferramenta para as mãos de Deus.
Aconselham, afinal, que ele deve fazer um seminário para encontrar sua vocação. E é aqui que vejo a maneira formidável como o autor descreve a sua escolha mais como resultado de uma imposição gradual, ainda que bem intencionada, daqueles que achavam o que era melhor para ele, do que pelo resultado de uma educação mais liberal que lhe desse o beneficio da dúvida. Os conflitos, no entanto, continuaram presentes através dos questionamentos relacionados com a fé que tencionava afirmar e a insatisfação com as explicações simplistas e conservadoras de seus tutores. Até que, no seminário, conhece Raina. Uma jovem liberal e impulsiva - o seu oposto - que introduz vida e poesia à vida de Craig Thompson.
O traço lúdico e o simbolismo obscuro é irradiado de pureza e sensibilidade para retratar a epifania do seu encontro com a paixão. E a maneira como Craig revela essa etapa de sua vida é comovente. Seja pela ingenuidade das suas intenções e sentimentos para com Raina, cheios de pureza, seja pela maneira como eles vivem esse momento. O primeiro contato com a sensualidade perene. O primeiro beijo. A primeira contemplação do corpo feminino - tão angelicais e marcantes para o jovem Craig que, mais tarde, consegue capturar com a sua arte a riqueza e a pureza daquela experiência.
É simplesmente indescritível.
Retalhos é uma obra corajosa que não teme expor episódios desconcertantes da infância e adolescência de seu autor. Pode ser provocativa e constrangedora para alguns puristas e até para a sua própria família. Mas a sua força rompe barreiras e descreve a vida de muita gente enredada pelo tradicionalismo e repressão de instituições que proferem - embora, repito, com a melhor das intenções - uma filosofia de vida exclusivista, arrogante e antiquada. Alegando que além dos seus limites só existe pecado, caos e perdição. E não olham para o próprio umbigo.
A obra foi vencedora de três prêmios Harvey (melhor artista, melhor graphic novel original e melhor cartunista), dois prêmios Eisner (melhor graphic novel e melhor escritor/artista), e, em 2005, do prêmio da crítica da Associação Francesa de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos.
Retalhos
Craig Thompson
592 pág.
Quadrinhos na Cia.